CRÍTICA | ‘Mães Paralelas’ une um dilema irresolúvel a aspectos da natureza humana

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Adquirido pela Netflix como uma aposta certeira para a temporada de premiações, Mães Paralelas é a nova filha de Pedro Almodóvar: um dos diretores espanhóis mais famosos e talvez o mais influente hoje em dia. Em um drama colorido (literal e figurativamente), Almodóvar arrisca-se em temas femininos para construir uma situação angustiante encabeçada pela atuação orgânica e essencial de Penélope Cruz. Talvez a atriz indicada ao Oscar na principal categoria feminina não seja a queridinha dos apostadores (refiro-me a vocês, fãs de Crepúsculo rs), mas seu trabalho nesta emblemática obra espanhol mostra que a atriz merece o seu lugar sob o holofote dos indicados. A disputa está acirrada de verdade.

Janis (Penélope) e Ana (Milena Smit) são mães solteiras de primeira viagem dividindo o quarto na maternidade momentos antes de darem a luz. Janis, uma mulher mais madura, não sente inseguranças quanto à sua filha e sente-se apoiada e resoluta quanto à “maternidade por acidente”. Já Ana, uma adolescente, sente-se triste, insegura e reprimida pela mãe diante de sua gravidez. Neste breve momento, entre conselhos trocados pelas duas mães, um vínculo profundo é criado entre elas e o acaso de algumas desventuras irá retorcer definitivamente o destino de ambas.

Vamos começar pela técnica. A direção de Pedro é ríspida, polida e objetiva. O diretor escolhe mostrar apenas momentos chave na trama, escancarando sua assinatura e empurrando o “Hollywood way” para longe. Assim, saltos temporais ocorrem de forma abrupta, e exigem a plena atenção de quem assiste para não perder os detalhes. Esta escolha narrativa dificilmente agrada ao grande público, o que pode lhe render perdas em número de telespectadores.

Almodóvar ainda cria uma maior sensação de desconforto ao inserir de forma íntima a visão do espectador dentro da cena. Em todo o filme, têm-se a sensação de que estamos imersos ali dentro do apartamento de Janis, com movimentos de câmera que simulam a visão de um ser humano e coreografias delicadas entre atores e o backstage. O último elemento que completa a marca de Almodóvar é o ritmo rápido de seus diálogos. A exigência dos atores é extrema, mas todos conseguem suprir as necessidades e oferecem um diálogo natural ainda mais naturalizado pelas personificações humanas em cena. Pedro não deixou pontas soltas e oferece um filme polido e cruamente diferente dos grandes estúdios.

A trilha, principalmente nos créditos iniciais, é quase premonitória de que situações controversas irão acontecer. O sinal mais claro disso é a incoerência entre o gênero do filme e o estilo no mínimo ousado da música. E a fotografia não fica para trás no âmbito da simbologia. Colorida dos pés à cabeça, Mães Paralelas reflete uma paleta do vermelho ao verde em cada frame, com significados quase ocultos. Para Janis, o roteiro reserva o vermelho: uma cor viva que expõem seus sentimentos afetuosos para com a filha. Para Ana, o verde: a cor diametralmente oposta ao vermelho no círculo das cores, o que expõe os sentimentos nebulosos da personagem ao entrar tão precocemente na maternidade. O representante majoritário disso é a cor das cases de seus respectivos celulares.

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No entanto, como percebe-se ao longo da narrativa, o roteiro começa a brincar com as cores, invertendo-as e as misturando à medida que os destinos de Ana e Janis tornam-se mais entrelaçados. O plot twist principal de Mães Paralelas é o maior combustível para isso. Bem preparado a partir de pequenos detalhes, a reviravolta é visível antes mesmo de acontecer, mas seu acontecimento não deixa de ser algo arrebatador. O roteiro não quer dar surpresas: quer estudar reações e relações. Em conjunto, Penélope e Almodóvar caminham pelo progresso da história delicadamente, entregando a situação e te prendendo pela atenção.

E agora entramos no principal pecado de qualquer história que procura por profundidade. O roteiro (também assinado pelo diretor) busca abarcar mais temas do que suas duas horas podem conter. A maternidade é o seu pilar central, e temas ao seu redor vêm atrelados de modo transversal numa história que se desloca longitudinalmente. Pontos como o trabalho versus maternidade, mães solteiras e gravidez na adolescência tornam-se pequenos objetos orbitando o tópico/plot central: não parecem fazer parte da história, e sim, ser apenas detalhes mencionados; o que gera o pecado desta obra: a superficialidade.

São inúmeros micro-temas em volta de uma única história (a qual por si só já seria o suficiente) e a mão de Almodóvar não consegue segurar todos eles. Talvez isso ocorra devido à megalomania de tentar inserir muito em pouco; ou talvez pelo fato de ser um homem escrevendo uma história inteiramente feminina. Talvez sejam as duas opções. O fato é que o longa funciona numa escala micro, mas o macro torna-se… desarmônico. E o que nos faz continuar, além da resolução do dilema moral de Janis, é o esforço de Cruz.

Penélope dá vida a uma personagem bem escrita e absurdamente real, a qual talvez não funcionasse ou tivesse a mesma intensidade com outra atriz. Sua personagem é composta por uma determinação, sensualidade e companheirismo expressos pelos seus olhares. É quase como se a personagem fosse escrita a partir dela. A atriz pega textos reais e os torna ainda mais reais pelos detalhes e nuances pontuais na voz, ao ponto que sobrepuja os personagens secundários e “secundariza” os principais. Isso se mostra presente até pela inserção da personagem no cenário: suas cores são as mais chamativas, as centrais. Não são precisos holofotes: ela brilha sozinha.

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Por fim, Mães Paralelas evidencia o quão distintos podem ser os caminhos que compartilham o mesmo início. O preço que Janis paga pelo silêncio só não é mais angustiante do que ver as escolhas que o amor de uma mãe a obriga a tomar. Ainda conectando num roteiro já muito bem preenchido a temática de desaparecidos políticos, a obra adquirida pela Netflix é uma história sobre histórias humanas e o quanto segredos podem separa e transformar famílias. Uma pena que desperdice boa parte de seu potencial numa conclusão rasa (“ué, só isso??”) para o núcleo de Janis, mas belíssima para as famílias apartadas no passado.

Nota: 4,2 / 5,0

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Autor do Post:

Matã Marcílio

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Um pré-fisioterapeuta nordestino que, perdido no mar das incertezas, fez das palavras seu refúgio. Um pouquinho mais de duas décadas de leitura e sedentarismo causado pelo prazer de deitar em frente a um espelho negro e observar toda a glória do homo sapiens ao escapar da realidade terrivelmente entediante. “Jojo Betzler. Hoje, só faça o que puder.”

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