Que a HBO é dona de um currículo repleto de produções televisivas quase cinematográficas todos nós já sabemos. Mãe das gigantescas The Sopranos, Game of Thrones e Euphoria, o streaming roxinho esforça-se sempre para colocar em sua grade as produções de maiores calibres técnicos do mundo televisivo e sempre entra nas premiações varrendo todas indicações que conquista.
Chernobyl não é uma exceção à regra: a minissérie com toques documentais mistura diversos núcleos de gêneros diferentes para expor o trágico incidente nuclear que acarretou consequências para o mundo todo e que é visto como a gênese do fim da União Soviética. Despertou o interesse? Pegue sua roupa antirradiação e sente-se para a crítica que eu estava ansiosíssimo para escrever!
É 25 de abril de 1986. Por volta de 01:40h da manhã, o reator da Usina Nuclear de Chernobyl explodiu, lançando luzes verdes e fragmentos radioativos para os céus da Rússia, ainda integrante da caída URSS. Diante do desastre ecológico, social e, sobretudo, político, os cientistas Valery Legasov (Jared Harris) e Ulana Khomyuk (Emily Watson), na companhia do estadista Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), tentam reduzir ao mínimo as consequências para os inocentes enquanto lidam com as regras do jogo de poder no cenário político soviético. Segredos, erros humanos, mentiras e a mídia pesam contra a vida de milhares de milhares de seres humanos nessa intensa história real.
Que minissérie fantástica! Primorosa dos aspectos técnicos isolados à união de todos os elementos. Embora já saibamos o fim da história, o roteiro de Craig Mazin, responsável pela futura adaptação de The Last of Us, consegue nos prender diante da tela igual Titanic (1997) e Dunkirk (2017) fizeram: unindo a tensão com a veracidade dos personagens e ainda adicionando o sentimento de “vai dar muito errado”; sendo este último incorporado com perfeição.
A direção de Johan Renck, que dirigiu toda a série, gosta de mostrar no lugar de falar. Seus pequenos closes economizam nos diálogos e identificam detalhes importantes, gritando silenciosamente “vai dar mer**” e torturando o telespectador (que já é ciente do quão perigoso aquilo é) ao mostrar inocentes que brincando numa nuvem radioativa. Complementando o visual, o auditivo pontua-se pela excelente trilha sonora, a qual acompanha a tensão e eleva-a com um ruído forte e incômodo, compondo uma atmosfera sufocante que progride de forma vagarosa e lancinante.
A ambientação também não fica para trás. Esta talvez seja a maior preocupação com imersão que eu já vi em uma série. A Rússia oitentista está impressa no DNA de Chernobyl. São de detalhes arquitetônicos aos nomes dos personagens, que vão muito além de “Yuri” e “Masha”. Na outra face da moeda, temos as atuações imaculadas não somente do trio principal, como de todos os outros personagens satélites. É algo tão natural, bem dirigido e polido na medida certa que, junto da ambientação, instauram um ar de documentário. Certamente, esta foi a proposta de Mazin: não só contar uma história, mas imergir o espectador nela com uma overdose de realidade.
Vale uma menção aqui sobre os efeitos especiais, incluindo o CGI e a maquiagem. Além da criação da explosão, efeitos visuais foram empregados para recriar as Chernobyl, Pripyat e Moscow da década de 1980. É tão sutil que é imperceptível. Já a maquiagem, por outro lado, é grotesca de tão real. As queimaduras radioativas, os efeitos patológicos da exposição aos radionuclídeos são de deixar qualquer um enjoado (em algumas das cenas no Hospital 6 eu tive de pausar e respirar para não vomitar. É sério!).
Outro ponto forte na condução de Mazin é como ele dirige suas personas. Como já dito, um dos pilares da série são seus personagens, construídos pecinha por pecinha. E, embora a série possua esse ar de filme de desastre, ele não se restringe apenas ao trio de cientistas. Há vários núcleos aqui: o político, o da saúde, o do proletário e o cívico. Isto eleva nossa identificação com pelo menos alguns personagens e aumenta nossa imersão, contribuindo também para o terror psicológico contido aqui e ainda não citado.
Enquanto Mazin compõe, Renck coordena. O toque deste diretor é assustador. O ritmo com que ele progride a história é dissecante, liberando pequenas pistas para quem desconhece o incidente e incluindo detalhes preciosos na fotografia. O mais genial talvez seja a velocidade com a qual ele se distancia da usina nuclear. Nos primeiros episódios, vemos o prédio de dentro ou de fora, sendo ainda dentro da propriedade. Com a progressão da história, vemos as consequências aumentando de área geográfica e, quanto maior a área, mais de longe vemos a usina. E assim vemos o quão rápido evolui não somente o problema, mas o entendimento dos personagens sobre o tamanho do problema.
Um adendo para a fotografia: composta em sua maioria por cores lavadas, sujas e sem graça (o que contribui para a atmosfera desconfortável), há sempre um toque de verde brilhante em algum lugar da tela. A meu ver, isso representa a onipresença da radioatividade no ar, uma vez que a cor da radiação na cultura pop é o verde elétrico/neon.
Mas para além de uma simples história de desastre, Chernobyl é um conto sobre a arrogância humana, colocando-a como não somente a causadora do incêndio, mas também como a gasolina. O medo em assumir a responsabilidade dos erros empurrou os líderes políticos à decisão de minimizar o problema para a mídia, o que acabou por ser o maior dos erros daqueles humanos. Alguns escolheram fechar os olhos. E se não fossem os esforços incansáveis dos cientistas, o mundo hoje seria outro. Um mundo mais triste, mais morto. Ainda mais perigoso.
Como único ponto negativo, há apenas duas cenas em que o diálogo foi usado de forma precariamente expositiva. A primeira delas no helicóptero, logo após o primeiro encontro de Legasov e Shcherbina, e a segunda delas protagonizada novamente por Legasov no julgamento. Embora sejam cenas orgânicas na trama, estão lá com o único intuito de explicar a física para o telespectador, quebrando a imersão por poucos minutos. Mas são detalhes tão minúsculos que perdem-se numa trama tão bem lapidada.
Por fim, Chernobyl segue sendo a joia na coroa da HBO. Não é para menos que tenha recebido o prêmio de Melhor Minissérie no EMMY de 2019. Sem dúvidas Craig Mazin possui o dom de contar histórias sobre a natureza humana sem incluir a pretensiosa impaciência de adicionar megalomania em seus roteiros. Ao contrário: Mazin consegue extrair um sumo lento de suas personas, cutucando os nervos expostos de quem acompanha sua história com atenção. Estou ansioso para ver seu trabalho na adaptação da épica jornada de The Last of Us após ter me deliciado com sua já (considerada) clássica história subversiva sobre desastres humanos.
Nota: 4,9/5,0
Autor do Post:
Matã Marcílio
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Um pré-fisioterapeuta nordestino que, perdido no mar das incertezas, fez das palavras seu refúgio. Um pouquinho mais de duas décadas de leitura e sedentarismo causado pelo prazer de deitar em frente a um espelho negro e observar toda a glória do homo sapiens ao escapar da realidade terrivelmente entediante. “Jojo Betzler. Hoje, só faça o que puder.”