CRÍTICA | Wolfwalkers recicla velhas narrativas com folclore irlandês

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O mês de setembro de 2020 nos agraciou com uma verdadeira dádiva cinematográfica que passou batido pelo Brasil, mas que recebe o selo de qualidade da maçãzinha mais cara do Brasil: Wolfwalkers, animação pertencente à AppleTV+, conquistou sua indicação ao Oscar 2021 de melhor animação com qualidade bem acima da média e originalidade ao usar uma antiquíssima lenda irlandesa misturada com conceitos originais e ao mesmo tempo familiares. É Pixar, foi por muito pouco que você ganhou…

Wolfwalkers se passa na Irlanda, em 1650. A cidade de Kilkenny, uma colônia inglesa localizada nas proximidades de uma floresta mística, vive assustada com ataques de lobos enquanto tenta expandir seus territórios agrícolas. Nesse cenário, Bill Goodfellowe (Sean Bean) é um caçador que vive com sua filha, Robyn (Honor Kneafsey), uma aspirante à caçadora. Certo dia, Robyn decide seguir o pai em uma de suas caçadas. A garota então conhece Mebh (Eva Whittaker), uma wolfwaker: uma menina que, ao dormir, transforma-se em lobo. As duas garotas tornam-se amigas e unem-se para proteger a floresta da expansão de Kilkenny, comandada pelo cruel Lorde Protetor (Simon McBurney).

Wolfwalkers emana originalidade. Não somente no uso da mitologia irlandesa esquecida pelo tempo, mas no próprio DNA do longa-metragem. O traço do desenho feito completamente em 2D (uma arte abandonada pelo custo e esforço) é magnífico, possuindo uma estética propositalmente inacabada que presenteia o espectador com cenários e visuais lindos (principalmente nas transformações em lobo). Além disso, a direção de arte fez um trabalho minucioso ao pensar em detalhes que começam já nos créditos iniciais e cravam uma identidade singular para o filme.

Acompanhando o visual, a trilha sonora composta por cânticos e melodias medievais é suave e envolvente, chegando a me fazer lembrar a voz de Aurora. A direção do experiente Tomm Moore em parceira de Ross Stewart consegue manter um ritmo balanceado que se acelera e se acalma com destreza, sem quebra da progressão da atmosfera e criando uma montanha-russa emocional divertida de se acompanhar. Sem diálogos expositivos e com um humor simples, o roteiro brilhantemente construído e adaptado é o trunfo dessa obra.

O roteiro estabelece os detalhes e situações importantes aos poucos e organicamente, cozinhando a preparação de seus plots que, embora sejam dedutíveis, funcionam justamente pelo tempo gasto em seu estabelecimento. Sem coelhos tirados da cartola: o script estimula a inteligência do espectador, entregando as pistas nos momentos certos e, o melhor de tudo, sem enrolação. Como sempre digo, menos é mais!

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E mesmo sendo direto ao ponto e contando uma história semelhante à que vimos em Avatar, Pocahontas e Princesa Mononoke, o roteiro assinado pelo próprio diretor Tomm e Will Collins consegue ser completo, econômico e carregar conceitos originais com excelente progressão narrativa. E por falar na progressão, a construção das cenas de ação facilmente compreensíveis é um verdadeiro mérito concebido pela harmonia deliciosa entre a direção da dupla e a direção de arte. É uma obra tecnicamente perfeita!

Embora de fato se trate de uma história infantil, Wolfwalkers, como todas as boas animações, trabalha com temáticas complicadas. E suas alegorias, algumas mais explícitas do que outras, foram bem construídas. A começar pela xenofobia e exclusão de Robyn. Enquanto a população da cidade irlandesa é nativa da região, a garota e seu pai mudaram-se da Inglaterra após a conquista da colônia. Mas saindo dessa camada superficial, percebe-se que o mesmo ocorre com os lobos.

Não somente pelo fato de serem supostamente selvagens. Antes de animais, os caninos eram os habitantes originais daquela terra mística. E o ódio fomentado pela ignorância, medo dos animais e, consequentemente, dos wolfwalkers é evidenciado pelas falas do Lorde Protetor, pelas músicas cantadas por adultos e crianças e pelos diversos cartazes estrategicamente espalhados pelo cenário. Dá pra pensar em vários exemplos assim da nossa realidade, né?!

Há também uma clara crítica ao processo de colonização e destruição de culturas pagãs. O processo de imposição religiosa, cultural e apropriação territorial por estrangeiros é o tema mais explicitado na narrativa. Porém, de forma mais sutil, o longa evidencia os verdadeiros monstros da história pela “desuminazação” nos traços dos vilões. Quanto mais se destrói o meio ambiente, maior distorção física do desenho.

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Outra grande temática é a já conhecida da superproteção dos pais. Tá, é verdade que já vimos isso em dezenas de outras produções da Pixar, Disney e séries/filmes infanto-juvenis no catálogo da Netflix. Mas o erro de um clichê não é ser clichê, e sim ser redundante. Wolfwalkers pega esse clichê e o constrói com perícia, deixando o gostinho de “já vi isso antes e sei o que vai acontecer”. Mas quando a consequência esperada acontece, estamos tão envolvidos que deixa a impressão de nos pegar desprevenidos. E isso, meu caro leitor, apenas mãos competentes conseguem oferecer.

Por fim, a discussão mais surpreendente do filme é sobre a liberdade. O roteiro discute diferentes conceitos do que é ser livre de verdade. Podemos ver o conceito dessa palavra pelos olhos de Mebh (fora da cidade), pelos olhos de Robyn (sendo filha do pai dela) e até de Bill, que escolhe trocar a liberdade pela “segurança” oferecida pelo Lorde Protetor. Afinal, o Lorde Protetor protege quem de que?

Com boas camadas de interpretação sobre quem de fato são os mocinhos, o longa elenca diferentes pontos de vista e suas distorções para um único termo. O maior exemplo disso ocorre com a Robyn. Seu pai retira seu poder de escolha para proteger a filha por causa de uma promessa e a mesma fica irada com isso. Logo à frente, Robyn se vê no mesmo dilema do pai e repete os mesmos erros com Meph. Onde termina a liberdade e começa a proteção? É certo sacrificar a liberdade de quem amamos para protegê-los?

“O homem nasce livre; e por toda parte está acorrentado.”O Contrato Social – Jean-Jacques Rousseau.

Embora definitivamente a animação mereça suas indicações e vitórias nas premiações, houve truculências mínimas, mas evidentes. O roteiro utiliza pequenas convenções (como erros espaciais) e coincidências para fazer sua narrativa caminhar. Tá bem, é uma animação infantil, então isso de certa forma é compreensível. Mas olhos atentos percebem essas muletas narrativas, e cabe a nós ativarmos conscientemente nossa suspensão da descrença para não quebrarmos nossa imersão.

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Errinhos de continuidade também estão presentes. Isso é mais do que comum em animações e talvez a Pixar seja o maior exemplo disso. Entretanto, não chega a ser algo tão gritante. De novo, apenas olhos criteriosos os percebem. Por favor, não tenham olhos criteriosos. É irritante.

Com erros de fato insignificantes, Wolfawalkers é uma aventura singela que discute colonização e preservação ambiental nas linhas e filosofia/sociologia nas entrelinhas. Um poderio forte de originalidade combinado à excelente direção de arte tornou essa história singela um oponente de peso a Soul nas premiações desse ano. Sendo seu trabalho mais famoso até o momento, não será surpresa ver o nome de Tomm Moore em mais projetos futuros com o mesmo nível de qualidade.

Apenas torço para que vejamos suas assinaturas em outros projetos o mais rápido possível. Ghibli, temos concorrência!

Nota: 4.8 / 5.0

Autor do Post:

Matã Marcílio

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Um pré-fisioterapeuta nordestino que, perdido no mar das incertezas, fez das palavras seu refúgio. Um pouquinho mais de duas décadas de leitura e sedentarismo causado pelo prazer de deitar em frente a um espelho negro e observar toda a glória do homo sapiens ao escapar da realidade terrivelmente entediante. “Jojo Betzler. Hoje, só faça o que puder.”

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