Como mais um dos projetos adiados pela pandemia, Mundo em Caos, uma promissora ficção científica, estreia nos cinemas já abertos em todo o Brasil. Embora esteja longe de ser uma obra-prima, o filme assinado por Doug Liman (lembrado por projetos medianos como Jumper, Sr. e Sra. Smith e No Limite do Amanhã) é uma farofa que faz jus ao trabalho precedente do diretor e não sabe como lidar com a grandiosidade do mundo que possui em mãos. Mas antes de lhes dar o veredito completo (e de talvez ser apedrejado na rua), destrinchemos a obra um pouco mais.
Chaos Walking acompanha a vida de uma comunidade de colonos em um planeta relativamente novo conhecido apenas como Novo Mundo. Composta apenas por homens e isolada de comunicações, é nela que vive Todd Hewitt (Tom Holland), um jovem que está aprendendo a controlar o seu “Ruído”: a manifestação audiovisual de seus pensamentos.
Todos os homens do Novo Mundo possuem a privacidade de seus pensamentos à mercê de quem estiver próximo para ver e ouvir. E, apesar de uma dinâmica restrita, a rotina da comunidade muda quando Viola Eade (Daisy Ridley), uma mulher que não possui o Ruído, cai no planeta.
Ninguém escapa da zuada
A premissa é interessante e é uma das mais originais no que consta a distopias. Embora possua uma estrutura narrativa totalmente previsível (adolescentes bonzinhos fugindo de adultos cruéis), a ideia do Ruído é original e promissora. Mas não basta ter uma boa ideia: é preciso saber executá-la. Assim, essa peça central do roteiro é bem utilizada, com bastante criatividade. No Novo Mundo, o pensamento torna-se uma arma ou um escudo. Entretanto, a manifestação audível dos pensamentos de Todd foca artificial e demasiadamente no aqui e agora. Isso pode ser entendido como uma forma de manter a privacidade dos próprios pensamentos, mas ninguém pensa tanto na própria atividade ao executá-la.
A ambientação de “mundo semi-contruído” é simples, mas efetiva. A fotografia e a direção utilizam a floresta para mostrar o isolamento da comunidade e a falta de interferência humana, além de paisagens com naves destruídas e arquiteturas futuristas, deixando o ambiente imersivo o suficiente. E os efeitos especiais não deixam a desejar: o Ruído é realmente lindo e é quase palpável. Não é pra menos, já que era responsabilidade implícita da direção de arte conceber algo que está presente na tela em 95% do tempo de forma realista. Caso contrário, o filme dificilmente funcionaria.
A concepção do Ruído é tão linda, é a coisa mais elogiável no filme
Outro ponto elogiável é a narração visual e sutil, pensada para não ser expositiva e revelada por ações e diálogos críveis. Podemos entender o passado e o presente sem a necessidade de flashbacks ou conversas desnecessariamente óbvias.
Já com os personagens, a luz da qualidade dá um falseio significativo. Os dois principais estão bem… OK. Ser apenas “ok” normalmente não é elogiável, mas aqui acaba sendo. Os dois antagonistas centrais são extremamente caricatos: os mais detestáveis seres humanos do universo. Muito me admira (negativamente) a performance tão exagerada de Mads Mikkelsen. É mesmo a mesma pessoa que interpretou o Hannibal?
A analogia ao machismo na história é perspicaz e é até capaz de nos intrigar (só um pouco), mas acaba sendo muito prejudicada pelas atuações exageradas e diálogos expositivos. Críticas sociais bem feitas exigem sutileza e uma mão habilidosa na abordagem; mas aqui isso não existe. Mastigaram demais para o público entender. “Olhe, isso aqui é uma crítica à sociedade atual. Tá vendo?” Quando erram nesse ponto, a história fica parecendo inapta na tentativa de ser profunda. E um sci-fi superficial é sinônimo de incompetência narrativa.
Como dito anteriormente, a estrutura dessa história é do tipo “eu já vi isso em algum lugar”. Adolescentes tentando salvar o mundo dos adultos foi o grande trunfo do cinema infanto-juvenil na década passada (quem não viu Jogos Vorazes, Divergente e afins por aí?). Porém, talvez na débil tentativa de fugir dos finais previsíveis que vimos em outras distopias ou simplesmente para tentar elevar este sci-fi ao status de cult, ganhamos o recurso do final em aberto: perigosíssimo em mãos inexperientes, mas uma relíquia para ficções tecnológicas (Black Mirror, corre aqui).
Embora a ideia tenha sido boa, foi muito mal executada. O resultado final tornou-se uma bagunça mutilada numa óbvia esperança de instigar o público a correr para o cinema após a estreia de uma continuação da história. Infelizmente, nem Alita – Anjo de Combate, nas mãos poderosas de James Cameron, foi capaz de fazer isso. Jurou né, Doug Liman?
Gastaram os honorários dos roteiristas na concepção dos pôsteres
Outro ponto fraquíssimo desse roteiro (já deu pra notar onde está o maior defeito do filme, né?) é a evolução do personagem de Tom Holland. Começando o filme como um garoto sem o menor controle do Ruído e, do absoluto nada, tornando-se capaz de criar imagens e sons complexos porque o roteiro precisava disso naquela exata minutagem do filme. E quando escrevo “do absoluto nada” é do absoluto nada MESMO! Os roteiristas parecem ter esquecido de incluir a evolução do personagem principal com a maior problemática do filme. APENAS!
E resolução do principal antagonista do filme é tão anticlimática que chega a dar dó. Foi só isso? Um personagem extremamente centrado e calculista derrotado por algumas visões que o roteiro tirou magicamente da cartola? Decepcionante para o que deveria ser o maior obstáculo da dupla de heróis. E o outro antagonista? Ficou com Deus! Parece que nem os roteiristas sabiam o que fazer com ele e simplesmente deram um chá de sumiço no personagem, mesmo após AQUELA cena do cachorro (Que homem desgraçado! Passar o filme torcendo pra ele ter uma morte lenta e dolorosa pra nada)!!
Umwallpaper bem lindo e de graça pra vocês
Já a outra personagem principal, a Viola, foi tratada mais como uma personagem secundária do que como o fator que desencadeia a trama. Daisy Ridley possui potencial e talento para a interpretação. Sua performance na trilogia sequel de Star Wars fornece tudo o que o papel exigia. E aqui não parece ter sido diferente: o problema, mais uma vez, foi o roteiro não ter pedido muito da atriz, jogando todo o holofote em cima de Tom Holland e deixando a personagem memorável apenas por estar no pôster do filme. Que desperdício de elenco.
Por fim, é uma pena que o primeiro livro da premiada trilogia Chaos Walking (vencedora do Guardian Children’s Fiction Prize) tenha sido adaptado com um roteiro tão fraco, indeciso e mal escrito. Mesmo utilizando coincidências como muletas narrativas, o que é um artifício preguiçoso, o filme é uma boa farofa distópica que mistura elementos de vários universos futuristas da década de 2010. A pandemia da COVID-19 certamente estragará os lucros do longa-metragem, e dificilmente veremos a continuação de um filme que já não tinha muito hype, mas que prometia bastante com uma premissa instigante.
O Ruído? Silenciou.
Nota: 3,4/5
Autor do Post:
Matã Marcílio
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Um pré-fisioterapeuta nordestino que, perdido no mar das incertezas, fez das palavras seu refúgio. Um pouquinho mais de duas décadas de leitura e sedentarismo causado pelo prazer de deitar em frente a um espelho negro e observar toda a glória do homo sapiens ao escapar da realidade terrivelmente entediante. “Jojo Betzler. Hoje, só faça o que puder.”