Infiltrado na Klan seria facilmente uma comédia bizarra se não fosse tão real e, infelizmente, tão atual.
O filme mostra a história real de Ron Stallworth (John David Washington) o primeiro policial negro que conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan. É claro que, obviamente por ser negro, ele não pode comparecer as reuniões, então inicia o contato com a “organização” como chamam no filme, por telefone e quando acontecem as reuniões presenciais quem vai no seu lugar é o seu parceiro Flip Zimermman (Adam Driver). Os dois conseguem chegar em altos patamares dentro da organização em um dos melhores filmes do ano, e sem dúvida um dos que mais merecem o prêmio de melhor filme.
Embora o longa se passe nos anos 70, todos os assuntos abordados são extremamente recentes. E é isso que torna o filme ainda mais difícil de digerir, se é claro você fizer parte dos grupos que ainda são alvos da sociedade. Um dos temas abordados é o que nos últimos tempos ficou conhecido como Fake news, um dos personagens cita o Holocausto como “uma grande conspiração judia” alegando não existir nenhuma prova de que o nazismo foi um movimento e que tudo é uma grande mentira que a mídia tradicional esconde para colocar judeus como vítimas. Essa é uma das pontes que o diretor Spike Lee usa para trazer os anos 70 direto para os nossos dias atuais. Afinal de contas as Fake news foram de extrema importância para a vitória do presidente dos Estados unidos, e nem precisamos mencionar os Eua quando o Brasil é um próprio exemplo claro.
Toda essa conversa sobre negação do holocausto é um grande motor que move o Adam Driver e cria no Flip uma jornada de descoberta que é também uma outra crítica que o diretor faz diretamente a nossa sociedade atual. Flip é judeu, mas não cresceu em um ambiente judaico, não seguiu as tradições e portanto nunca se viu fazendo parte daquela cultura. Mas isso não deixa de fazer parte dele. Ele como um homem branco que nunca observou o preconceito como algo real, ao se ver em um ambiente cercado de preconceituosos que são grandes fãs dos governantes que disseminaram seu povo, se percebe sentindo que é sim um judeu, sente pela primeira vez o incomodo de ser quem é. Ao fazer isso, Spike Lee traz para o telespectador a ideia de que os movimentos sociais, são criticados por uma parcela da população que nunca sofreu, e por isso acredita que não é necessário e até mesmo que não existe, apenas porque aquilo nunca lhe fez mal.
Essa jornada do Flip funciona ainda melhor quando vemos a interação entre ele e Ron, que é o grande fio condutor do filme. Ron, embora esteja infiltrado no meio de um povo que tenta acabar com toda a sua raça, se vê ainda mais perdido por ter que esconder sua identidade também para o seu interesse amoroso. A Patrice (Lara Harrier) é uma ativista de extrema importância, mas que enxerga todos os policiais como porcos racistas. Não é preciso muito tempo de tela para entendermos porque essa visão tão extremista, policiais brancos usando a força e o distintivo para abusar de seu poder não é também uma coisa que ficou nos anos 70. Spike Lee trás isso novamente em forma de crítica, não exclusivamente aos policiais brancos, mas também aos movimentos sociais e as discrepâncias que existem dentro deles. Embora esteja na policia, Ron também é ativista, também está em uma luta pelo seu povo, e diminuir isso por estar sendo feito de dentro é errado também. O filme mostra que o que importa é a luta, é ser ativo dentro do seu movimento e querer que toda luta contra intolerância seja feita do mesmo jeito é egoísmo também. Isso tudo é muito mérito de John David Washington, que consegue transmitir todas essas dúvidas e inseguranças muito bem, principalmente quando mostra a solidão que ele sente por não encontrar apoio em nenhum dos lados.
A imersão do filme funciona bem com a trilha sonora muito bem escolhida, o figurino setentista e uma fotografia que fica constantemente disputando uma dessaturação com o aumento de tons marrons e verdes. Até o fato do som chegar antes da imagem, como quando os tiros da cena de tiro ao alvo chegam enquanto a cena ainda está na conversa da delegacia, cria uma constante sensação de incomodo. Que é mais um grande acerto do filme. Ele nunca se acomoda e até, ou principalmente até, nas cenas em que tom cômico é predominante ele incomoda. Spike Lee faz o telespectador rir das situações, ao mesmo tempo em que o faz refletir o quão errado e ridículo é aquilo tudo.
Um detalhe muito interessante do filme, e que o torna ainda mais crível é mostrar as diferenças entre os membros da Klan. Não existe um estereótipo racista, temos o Felix (Jasper pääkkönen) que é um norte americano caricato, barulhento, desconfiado e que deixa em completa evidencia todos os nuances de sua superioridade masculina branca. Em contra partida temos Walter (Ryan Eggold) que é um homem mais calmo, paciente, até carinhoso eu diria, bastante educado. E não se pode deixar de lado a esposa de Félix, Connie (Ashlie Atkinson) a esposa subserviente que sonha em ser parte do movimento de seu marido e busca sentir uma dose de superioridade enquanto conformá-se em ser apenas uma grande empregada do marido. Só deixando em evidencia que racismo não tem cara.
Toda essa jornada leva diretamente ao grão mestre da organização David Duke (Topher Grace) um homem extremamente perigoso e que aqui não é demonizado pelo diretor, muito pelo contrário, ele é representado como alguém educado, muito bem articulado, que sabe exatamente onde quer chegar e que a politica é o melhor caminho. David fazendo aqui o papel do nacionalista orgulhoso replica durante o filme vários momentos que são diretamente ligados ao presidente Trump. Frases como “America first” e “Make america great again” são citadas no filme com uma naturalidade que seria assustadora, se já não fosse o verdadeiro discurso do atual homem mais poderoso do mundo. Topher brilha em cena, no que talvez seja a melhor atuação de sua carreira.
A montagem do filme é um deleite a parte, cenas como o discurso de Carmichael falando da beleza negra enquanto as cenas são dos rostos negros e com traços tão marcantes, ou até mesmo o ponto mais alto do filme; a cena em que o convidado narra um acontecimento com um homem negro que foi diretamente inspirado no filme O nascimento de uma nação, e enquanto essa narrativa comove o rosto do telespectador e dos personagens que são ali espectadores daquele discurso, o filme intercala com cenas da iniciação dos novos membros da ku klux klan que logo após serem iniciados vão assistir O nascimento de uma nação e o veem como uma grande comédia, suas risadas altas e desesperadas são contrastadas com o sofrimento e o medo no rosto de quem sabe exatamente que é visto como uma grande ameaça.
Mas o grande soco no estômago vem nos 5 minutos finais do filme. Se você esqueceu que o filme não era uma grande comédia setentista e que na verdade estava falando de um assunto realmente atual, Spike Lee te brinda com cenas reais de uma manifestação que aconteceu em Charlottesville-Eua em 2017 onde neonazistas foram as ruas pedirem por seus direitos de brancos alegando que vidas brancas importam, tudo é claro regado a comentários positivos do próprio David Duke que aqui inclusive elogia a atitude de Trump. Mesmo membro que elogiou Bolsonaro ao alegar que “ele soa como nós” O silêncio presente no final do filme, com a bandeira dos Estados unidos ficando em preto e branco é um contraste direto com o próprio filme que acabamos de assistir, não tem humor, não tem trilha, o silêncio em preto e branco é um lembrete de que toda essa onda vem se espalhando, não só nos Eua e no Brasil ,como ao redor de todo o mundo.
Spike Lee ao lado de Jordan Peele (Get out -2017) trazem juntos um dos melhores e mais importantes filmes dos últimos tempos, uma parceria que deu certo e que mostra o quão é necessário esse tipo de longa nos momentos atuais. Spike provando que está em excelente forma, trás um dos melhores trabalhos de sua carreira e que trás reflexões que são de fato o primeiro passo para mudanças que de tão urgentes se tornaram extremamente necessárias.